sábado, 30 de janeiro de 2010

Código Desconhecido



Título Original: Code Inconnu - Récit incomplet de divers voyages (França, 2000)
Direção: Michael Haneke
Roteiro: Michael Haneke


“Código Desconhecido” é um filme que foge de qualquer narrativa convencional. Na realidade, um dos grandes inovadores da última década. Demoro a lembrar de um filme recente que se proponha tão corajosamente a quebrar toda e qualquer estrutura narrativa com tanta competência.
Este é um filme onde não conseguimos identificar um “presente narrativo”, ou seja, um tempo definido onde transcorre a ação do filme, e assumir essa postura de forma tão pontual, definitivamente não é para qualquer aventureiro.

“Código Desconhecido” fala da convergência de cinco personagens que são ligados por um incidente aparentemente banal e impensado, cuja ação decorre em pouco menos de cinco minutos, mas que traz profundas conseqüências nas vidas dos envolvidos. Embora seus caminhos se cruzem, em momento algum eles realmente enxergam uns aos outros, e o diretor Michael Haneke (“Caché” , “A Professora de Piano”) desenha assim sua metáfora sobre o distanciamento nas relações humanas.

Juliette Binoche é Anne, uma atriz de cinema em Paris, casada com o ausente e distante fotógrafo Georges, que viaja para o Kosovo para retratar os horrores da guerra através de suas lentes. Jean, irmão adolescente de Georges, chega na casa de Anne em Paris fungindo da casa do pai. Lá, acaba tendo um incidente com uma pedinte na rua, quando joga em seu colo um lanche comido pela metade.

Este incidente aparentemente banal tem o poder e a abrangêcia de transformar as vidas das pessoas envolvidas diretamente ou não, incluindo Anne, seu irmão Georges, seu pai, a pedinte romena que é deportada para seu país de origem e Amadou, descendente de imigrantes Africanos e professor de percussão para crianças surdas.

As trajetórias dos personagens são contadas de forma irregular e aparentemente aleatória. “Aparentemente”, pois não há nada de aleatório na escolha das construções. O tempo é desfragmentado, e assim em muitos momentos ficamos sem saber se o momento retratado vem em decorrência do incidente ou apenas levou nossos personagens até ele, o que torna “Código Desconhecido” um filme difícil para o público que tem a necessidade de um fechamento e de uma coerência linear. Não existe o fechamento desejado; há apenas o retrato de um estado humano. A falta de coerência linear e de narrativa convencional poderia sugerir para alguns espectadores que o filme carece de significado ou não diz a que veio, mas nada poderia ser mais injusto e longe da verdade. “Código Desconhecido” é repleto de significado em vários níveis. O esforço do espectador para assegurar uma continuidade, ainda que ilusória, apenas descaracteriza a experiência cinematográfica, que adquire nova qualidade ao abrirmos mão do controle e da necessidade de explicação.

É justamente através da descontinuidade e da fragmentação temporal que o diretor Michael Haneke consegue transitar desde os níveis mais próximos e pessoais do ser humano até a grande coletividade, passando por várias camadas de entendimento, que envolvem nacionalidade, idioma, cultura e características pessoais. Somente assim temos a dimensão das experiências que transformaram cada personagem no que eles realmente são.

Logo na primeira seqüência, temos um plano que, descobrimos mais tarde, poderia ser o resumo do filme todo: Uma criança gesticula e se expressa corporalmente, em um plano geral, aberto, contra um cenário absolutamente limpo e despido de qualquer elemento. Ela é surda e muda, e nos próximos planos, outras crianças surdas tentam adivinhar seus movimentos em um jogo de mímica.

A cada tentativa de acerto, uma negativa, e assim o filme todo parece transcorrer, sem haver em nenhum momento comunicação real entre os personagens. O plano é longo sem ser exagerado. Permite o tempo necessário para calmamente nos familiarizarmos com a pequena menina que ali se encontra. As crianças se comunicam através de gestos, mas impedidas de se expressar em linguagem formal. A surdez é apenas mais um elemento que impede nossa comunicação efetiva, e a primeira das perguntas mordazes lançadas por Michael Haneke sobre sua platéia.

“Código Desconhecido” trata de um adormecimento coletivo da sociedade, de um distanciamento e insensibilidade que apenas crescem à medida que ninguém mais olha para o próximo.

Superficialmente e numa análise rápida, um espectador poderia facilmente cair na armadilha de dizer que “Código Desconhecido” é um filme sobre o racismo, considerando algumas das cenas com Amadou, as dificuldades enfrentadas pela Romena expatriada, e o histórico xenófobo da França moderna, mas essa suposição seria por demais superficial. Na realidade, é uma história onde ninguém se toca, ninguém verdadeiramente se olha, se comunica ou enxerga o outro. Para toda e qualquer tentativa de conexão, uma recusa, como na cena com Amadou no restaurante, onde ele tenta se aproximar e beijar as mãos da sua acompanhante, que logo se distancia e inicia uma conversa banal. Os diálogos diretos entre os personagens quase sempre giram em torno de amenidades, evidenciando a impossibilidade de comunicação íntima e verdadeira.

As ações e as trajetórias dos personagens são interrompidos bruscamente por telas pretas e cortes súbitos. Os black-outs que cortam as narrativas nos passam a sensação de metáforas para a descontinuidade das relações. É provável que esta metáfora não tenha sido exatamente a imaginada pelo diretor, mas as interrupções súbitas ajudam a criar o clima de quebra que existe na vida, já que em muitos momentos eles acontecem exatamente, no ponto em que o espectador começa a se envolver com o personagem e sua história. É quando estamos no limiar dessa conexão que Haneke interrompe sua narrativa. Em determinados momentos, o corte preto vem antes mesmo que termine a ação do personagem.
Muitas das cenas terminam como começam - o próprio filme termina com uma última cena muito parecida com a primeira, num movimento circular que não causa estranheza. É a entrega a um puro exercício de apreciação.

Uso do Quadro e o Filme dentro do filme


Michael Haneke usa constantemente o espaço fora do quadro para acrescentar informações e elementos para o espectador; é o que acontece fora do quadro que cria a situação que vemos dentro. O diretor brinca facilmente com tudo aquilo que ouvimos, mas não vemos, com aquilo que vemos, mas não entendemos ou contextualizamos.

Através da personagem de Anne, que é atriz, somos apresentados a uma ficção dentro do filme, para depois permitir que sua câmera se confunda com a da história que há dentro da história. Este movimento é tão leve e fluido que não percebemos o momento em que isso acontece. É harmonioso e sutil, porem extremamente marcante.

Em todos os papéis que interpreta, Anne se encontra presa, confinada. Isso se reflete nas câmeras e em closes frontais – rosto em evidência, talvez em busca de sua verdadeira essência. Em determinados momentos, podemos apenas supor que ela está atuando, pois as câmeras são invisíveis. Embora nada na cena indique que esta é a vida real de Anne, nada indica que estamos no tempo presente.

Através das ações dos personagens, “Código’ permite a projeção do espectador, fazendo as vezes de uma tela em branco, pronta para ser preenchida com qualquer devaneio, sentimento, interpretação ou racionalização do espectador.

Em momento algum o diretor lança mão de trilha sonora para “Código Desconhecido”, a não ser para a cena final do filme. Ainda assim, é uma espécie de trilha diegética, transposta de uma cena com Amadou, fazendo uma das poucas conexões entre os personagens. Quando falamos em poucas conexões, na verdade, é apenas para evidenciar o caráter de distanciamento, pois embora sim, eles estejam intimamente conectados, quase todos os personagens parecem ignorar este fato.

Cadência e ritmo da percussão repetitiva de Amadou e seus alunos parecem marcar ainda mais o caráter mecânico dos personagens.

Li um comentário sobre o filme que expressa muito bem o mesmo sentimento que tive ao assistir o filme, que expressa essencialmente que embora o diretor não seja um novato, o que “Código Desconhecido” nos traz é algo completamente novo, com espírito jovem.

Não se sabe o que é real e não é dentro do filme, e honestamente, isso não faz a menor diferença. A mensagem atinge seu destinatário de forma clara e pungente. Pra o encerramento, novamente a criança, que no olhar atento de Michal Haneke pode ser um sinal de esperança, ou talvez não passar de um tremendo sarcasmo.

4 comentários:

  1. Ah, ela voltou a blogar. Isso é ótima notícia.

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  2. Muito interessante, tambem adoro cinema amiga, bjss

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  3. Olá Julia,
    ótima análise do filme, parece que lendo isso eu consegui compreender a(s) sensação(ões) que tive ao vê-lo. um olhar atento e sensível... parabéns!

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  4. Que crítica primorosa, Julia!Vim fazer uma "visitinha" por aqui hj pq tô à cata de alguma dica de filme bom pra assistir. Escolhi esse.
    beijos.

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